sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Da delicadeza

Talvez a brutalidade do século XX seja o fator responsável pela suprema delicadeza de nosso tempo. Tal brutalidade é hoje incompreensível. A palavra evoca uma vaga e rarefeita idéia que, embora não mais comunique efetivamente uma experiência, ainda cumpre bem o seu papel nos discursos de lamúria e de escândalo. Se antes de sua exaustiva repetição tal idéia foi de fato compreensível um dia, ou se pelo menos sua palavra se prestava a indicar a positividade de uma ocorrência nefasta, esse decerto não é mais o caso para as gerações contemporâneas, que não mais são capazes de extrair dela qualquer sentido, pois o mundo se tornou delicadíssimo, a despeito ou por causa de sua história recente e tão supostamente brutal.
Delicadeza que se expressa na afetada reivindicação por respeito e na virtualmente ilimitada capacidade de compreensão de uma suposta alteridade. O mundo se tornou de fato tão delicado que desapareceram como num piscar de olhos os diversos códigos de delicadeza que as gerações mais antigas cultivaram a um preço e esforço que mal conseguiríamos conceber. Hoje é delicado ser informal. Se tudo mergulhou na aura da informalidade — da linguagem aos sentimentos, passando pelos gestos e gostos, vestuário e compromissos — não é exatamente por termos nos embrutecido, mas por termos nos tornado delicados de fato, num sentido que causaria náuseas a homens que iam de cartola ao teatro e mulheres que usavam espartilho. Pois então a delicadeza era um modo possível de comportamento, e não uma propriedade das pessoas. O sentido de códigos de delicadeza era a explicitação não de uma natureza simples e obviamente delicada, mas da cultivada capacidade de agir delicadamente. Somente nesse sentido a delicadeza poderia aparecer como algo gracioso, pois tornada essencial dificilmente se pode diferenciá-la da mera frouxidão.
Não precisamos mais agir delicadamente porque nos tornamos delicados de fato. É como se os lábios não mais precisassem sorrir graciosamente porque todo o resto já sorri estupidificado. Com mais um pouquinho de dedicação a humanidade realizará em breve o supremo ato de delicadeza, e dará uma generosa gorjeta aos seus carrascos.

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